Doris Miranda / Redação CORREIO | Fotos: Reprodução/Debret Ninguém tinha ouvido falar nos bailes de fantasia europeus, muito menos nos trios elétricos, que pareceriam naves espaciais chegando para um súbito ataque. Mas o Carnaval já existia, sim, nas ruas da velha São Salvador em 1832. E com bastante empolgação, é bom ressaltar.
Havia, claro, uma certa ingenuidade naquele atirar de bolas de cera cheias com líquidos (conhecidas como laranjinhas), mas a brincadeira era garantia de diversão entre a elite branca que tomava conta das ruas mais nobres da capital baiana. Com os tabuleiros abarrotados com os tais artefatos, que também incluíam seringas feitas de lata, os pândegos alvejavam todos os que se aventuravam a passar na mira. Os jatos não poupavam ninguém: homem, menino, menina, mulher. Mas não bastava encharcar os coitados, tinham também que salpicá- los com farinha, transformando um simples molhar numa lambança absoluta.
Aos negros era permitido adaptar em seus guetos a lambança de água e farinha dos entrudos
Foi numa dessas tardes ensolaradas de fevereiro, numa segunda-feira de Carnaval, para ser mais preciso, que o naturalista inglês Charles Darwin (1809-1882) resolveu descer do HMS Beagle, embarcação que lhe prestou abrigo durante os cinco anos da expedição que mudou a compreensão da história da vida terrestre, 150 anos atrás. Ao lado dos tenentes Bartholomew James Sullivan e Clements Wickham, Darwin se aventurou pela região do Comércio, onde o navio estava atracado, e vagou em meio à folia.
Janotas bem aprumados como todo bom inglês, viraram alvos preferenciais dos foliões, que, obviamente, não lhes foram piedosos quando lambuzaram suas roupas com água e farinha. 'Achamos muito difícil manter a nossa dignidade enquanto caminhávamos nas ruas', escreveu Darwin no diário que mantinha a bordo, mais tarde transformado em livro (A viagem do Beagle).
Não precisa ser nenhum historiador para perceber que os visitantes não gostaram muito daquele jogo batizado pelos portugueses como entrudo. 'Para Darwin deve ter sido muito complicado percorrer as ruas do Comércio e do bairro da Sé. Afinal, as mulheres e os estrangeiros eram sempre os mais atingidos. Eles sofriam muito', afirma o historiador Raphael Vieira Filho, que fez mestrado sobre a ‘Africanização do Carnaval Baiano’.
A escravidão horrorizou Darwin
Poderia Darwin ter se encabulado com um pouquinho mais - e se envergonhado de revelar no diário. Não há documentação de sua passagem pelo folguedo,como ressalta o biólogo Charbel El-Hani, especialista na estada de Darwin na Bahia, mas quem garante que ele e os amigos não se aventuraram também pelos batuques que os negros faziam nas fontes onde iam buscar água todos os dias pela manhã e no final da tarde? O samba comia solto entre os cativos e os alforriados, que dançavam até suar com ritmos como corta-jaca, bate-baú e lundu.
Não que o naturalista tenha arriscado seus passinhos. Mas pode ter corado em demasia ao perceber que as negras se movimentavam, invariavelmente, com os peitos à mostra, como era costume local. 'Elas tinham pouquíssima vestimenta própria e de tarde iam lavar roupa e utensílios da casa. Suavam muito e era natural que se cobrissem apenas com saias', explica Raphael Filho.
Preparativos
Não havia a tal indústria do Carnaval como conhecemos hoje, que envolve todos os segmentos da cidade. Mas aqueles foliões de 1832 precisavam de um tempinho para preparar a festa, que começava a ser planejada uns 15 dias antes. As negras de ganho reaproveitavam a parafina que recolhiam em formas cilíndricas e as enchiam com água, na maioria dos casos, para revender aos brancos. Se havia encomenda específica de alguma mocinha apaixonada, elas incrementavam o líquido com perfumes caseiros que explodiam no objeto de desejo como uma delicada declaração de amor.
Os homens juntavam folhas de latão e as moldavam numa espécie de seringa gigante que esguichava água para todos os lados. Alguns mercavam isso abertamente, outros “presenteavam” seus senhores com os objetos. Em segredo, confeccionavam para eles próprios. Ingredientes a mais no entrudo miscigenado que os negros faziam para si. Afinal, não tinham permissão para participar do folguedo da população branca. 'Os entrudos eram divididos como as classes sociais da cidade. Os brancos de classe alta tinham licença para molhar todos. Os brancos pobres se molhavam e aos negros. Os negros libertos podiam molhar os escravos e estes só molhavam os cativos. As mulheres não molhavam ninguém. Eram alvo de todos', ensina o historiador. Darwin, no meio disso, só podia mesmo ter ficado embasbacado.
Dos entrudos aos trios elétricos
Os entrudos eram realizados sem música. A cantoria no Carnaval só era permitida entre os negros, que tinham uma festa à parte. Também não existiam confete e serpentina até 1840, quando os bailes de máscaras começaram a ser importados da França e da Áustria. Mas isso só entre os ricos.
A popularização destas festas aconteceu três décadas depois, quando os foliões fantasiados se reuniam nas ruas e saíam cantando até clubes como Fantoches da Euterpe, Cruz Vermelha e Inocentes em Progresso, que permaneceram fortes por muito tempo. A folia de rua, como conhecemos hoje, só começou a ser realizada a partir da década de 1930, com os chamados corsos, desfiles de carros com músicos tocando, que desciam a Rua Chile em direção ao Campo Grande.
À negritude, como antes, só era permitido festejar em áreas periféricas ao desfile oficial, como o Terreiro de Jesus, Baixa dos Sapateiros, Barroquinha, Saúde, Tororó, Garcia, Liberdade, Cosme de Farias, Engenho Velho de Brotas e Itapajipe. Esta divisão rígida começou a desabar mesmo no Verão de 1950, quando o engenheiro de mecânica Osmar Macêdo e o radiotécnico Dodô Nascimento decidiram desafiar o pomposo desfile elitizado, tocando os seus instrumentos caseiros e eletrificados em cima de um velho Ford 1929, o ancestral do que viria a ser o trio elétrico, cujo conceito original era reunir e congregar todos.
Eventos
Depois do Carnaval, dia 28 (sábado), data em que o Beagle aportou pela primeira vez em Salvador, o Grupo Gérmen promoverá um cortejo carnavalesco nas ruas do centro da cidade, para recordar a participação de Darwin na folia momesca. Dentro da programação consta ainda a instalação de um monumento no passeio do antigo prédio do jornal A Tarde, erguido sobre as ruínas do que fora o Hotel Universo, onde o cientista se hospedou.
No dia 25 de março, acontece no Instituto Anísio Teixeira palestra sobre Aplicações tecnológicas do pensamento evolutivo: computação bioinspirada. Em junho é a vez do simpósio Integrando o Conhecimento Atual sobre Evolução. Em outubro está programado o encontro Darwin na Bahia.
Maiores informações no site www.darwinnabahia. ba.gov.br/.
Ciência e beleza: outras impressões da Bahia
Não foram apenas as peculiaridades do Carnaval de Salvador que impressionaram Darwin em sua passagem pela Bahia, onde permaneceu de 28 de fevereiro até 18 de março de 1832. O naturalista ficou de queixo caído com a 'luxuriante' exibição da natureza selvagem ainda abundante nestas terras. O registro de sua empolgação sobre aquela vista 'magnífica' que se descortinou sob seus olhos não deixa dúvidas do estado de espírito que tomou conta do jovem inglês de 22 anos.
'Ninguém poderia imaginar coisa mais bela do que a velha cidade da Bahia, cercada por uma floresta luxuriante, de belas árvores, numa costa íngreme, debruçando-se sobre as águas calmas da grande Baía de Todos os Santos. Em suma, e o que mais se pode dizer? Ela é uma das paisagens mais lindas dos Brasis', escreveu no diário que manteve para si e nas cartas que enviou ao pai, na Inglaterra.
Foi por aqui que Darwin pisou pela primeira vez no interior de uma floresta tropical, que, neste caso, tomava grande parte da cidade alta, da Lapinha, passando pela Liberdade, até toda a extensão do Cabula e do subúrbio ferroviário. A reação não foi menos empolgante. 'A exuberância da vegetação é vitoriosa: a elegância das gramíneas, a novidade das plantas parasitas, a beleza das flores, o verde lustroso das folhagens, tudo tende a este fim', documentou.
'A experiência da mata atlântica foi fundamental na mudança de seu ponto de vista, o que deu uma guinada definitiva do criacionismo para o evolucionismo', afirma o professor Charbel El-Hani, do Instituto de Biologia da Ufba. A Bahia também foi cenário para uma das mais violentas discussões com o capitão do Beagle, Robert FitzRoy. Sim, porque o cientista, horrorizado com a enorme população cativa da Bahia, não conseguiu aceitar que seu capitão se manifestasse a favor da escravidão. Os motivos eram claros.
Darwin vinha de uma família de abolicionistas politicamente ativos. 'É algo aterrador ouvir os crimes monstruosos que se cometem diariamente e escapam sem punição. Se um escravo mata seu senhor, depois de ficar confinado algum tempo, ele se torna propriedade do governo. Não importa o tamanho das acusações que possam existir contra um homemde posses, é seguro que em pouco tempo ele estará livre'.
(Reportagem publicada na edição impressa do CORREIO de 19 de fevereiro de 2009)
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